Máquinas modernas

December 30, 2023

Segunda-feira passada aconteceu comigo algo inesperado, mas que sempre acontece com alguém de vez em quando. Meu carro não funcionou pela manhã, justo quando tinha que levar os meninos para a escola, fazer supermercado, banco e dentista. Ou seja, um verdadeiro caos. O cenário era ainda pior porque meu marido estava viajando e não podia fazer a geringonça andar. Este foi um dos principais motivos por que resolvi me casar com um engenheiro mecânico: poder contar com ajuda profissional e gratuita nestas horas. Mas desta vez não funcionou. Uma mulher normal faria o óbvio: usaria o carro do marido, já que o calhambeque estava mesmo encostado na garagem. Mas eu não sou uma mulher normal, diga-se de passagem, e fiquei na mão, quer dizer, fiquei a pé mesmo. O problema é que a segunda carroça era muito pior que a primeira (desastre dos desastres): tinha câmbio manual.

Contrariando meu quociente intelectual, meu grau de estudos universitários, espírito empreendedor e inteligência prática, tenho horror a qualquer carro manual. A minha salvação foi que meu marido me comprou um carro automático, senão a carteira de motorista ficaria empoeirando na gaveta. Não é que eu não consiga dirigir nenhum estrupício desse tipo, mas considero que um simulador de voo, um acelerador de partículas subatômicas e um automóvel manual são do mesmo grau de dificuldade operacional. Juro que não tenho implicância com o carro do maridão, até que é bem bonitinho, azulzinho, mais novo que o meu, ar-condicionado e tal, mas esse negócio de mudar marcha manualmente não é comigo. Tenho certo pânico em pensar que ele pode afogar na subida, justo no sinal verde, ou que não consiga tirá-lo do estacionamento da escola com todos me olhando. Mas, acreditem, tenho justificadas escusas.

O primeiro carro, aquele em que aprendi a dirigir de verdade (o golzinho da autoescola não conta, pois entendo que era um ambiente artificial), quando ainda era solteira e morava com a minha mãe, era um mimoso e delicado fusquinha. A cor não ajudava muito — era algo entre o bege, o marrom e a famosa cor do burro quando foge — e a mecânica do bicho era, no mínimo, insuficiente. Derby (era o seu nome) veio parar em casa porque meu irmão, advogado, o recebeu como pagamento por uma ação civil na qual atuou. Parece que era um divórcio, e a senhora, sua cliente, queria se livrar tanto do carro quanto do marido. Eu compreendo a situação da pobre mulher. Não sei nada do marido, mas o carro, modelito 66, estava um tanto, digamos, desatualizado. O coitadinho afogava nas subidas e descidas nas mesmas proporções, levava uns 20 minutos para atingir a marca recorde de 60 quilômetros por hora, e só conseguia engatar a ré com muita força espiritual. Porém, eu não podia reclamar muito: era o único veículo, além da bicicleta do meu sobrinho, que minha família me permitia dirigir (ainda acho que era perseguição da parte deles). Mas eu adorava o bichinho. Foi com ele que aprendi a usar o câmbio, aprendi tão bem que entendi que esse negócio de mudar marcha não era comigo. Acho que fiquei meio traumatizada, sei lá. Bom, o que sei é que nesse dia eu estava sem carro, sem esperança e cheia de coisas para fazer. Como diz minha tia Dolores, a necessidade faz o sapo pular, e o meu sapo era aquele automóvel azulzinho (acho que era um Chevrolet, ainda não prestei muita atenção), e eu tinha que encará-lo com fé e vontade.

Primeiro, tive que convencer os meninos a entrar no carro do pai e aceitar a mãe no volante, o que me tomou bastante tempo e persistência (criança se impressiona por qualquer coisa…), e ainda ignorar as advertências da minha ajudante: “Mas dona, a senhora vai dirigir o carro do patrão? Ele não vai ficar bravo? Será que a senhora consegue? Ai Minha Nossa Senhora!” — e por aí afora. Mas, sou mais forte que tudo isso. Enfiei os meninos no banco traseiro — com um certo esforço, admito —, apertei o cinto de segurança, ajustei os retrovisores, dei a partida, conferi novamente o cinto de segurança, virei a chave, engatei a ré e… o carro morreu. 

Como eu já esperava certas dificuldades no início, não desisti. Apertei mais um pouquinho o cinto de segurança, mandei os meninos pararem de rir, virei a chave, o motor funcionou (que bom!), engatei a ré com toda a confiança do mundo, pedi para a assistente ficar calma e abrir o portão da garagem, e partimos. No princípio, me custou um pouco entender a função do terceiro pedal (aquele que fica à esquerda e que esqueci o nome) e me familiarizar com o câmbio, mas posso dizer que o engenho humano venceu a máquina. Sentia que estava travando uma batalha similar à do enxadrista Gasparov e o computador, e subitamente me dei conta da minha enorme força interior. Não foi sem uma certa surpresa que consegui fazer o percurso casa-escola com relativo êxito. O carro não afogou nenhuma vez, mas demorei razoavelmente para encontrar a marcha adequada a cada situação, o que ajudou os outros motoristas a desenvolverem a habilidade da paciência. 

Chegamos à escola, mas preferi parar mais afastado no estacionamento, mesmo tendo vagas mais próximas da entrada, pois acredito que mais vale a prevenção do que buscar salvação. (Este pensamento é muito profundo.) Meninos entregues, agora é hora de ir ao supermercado. Respirei fundo, soltei um pouco o cinto de segurança (estava muito apertado), estudei detalhadamente as imagens dos três retrovisores, virei a chave, dei a partida, saí, o carro morreu. Algumas mães que estavam conversando na entrada riram discretamente, e pensei, imbuída de enorme tolerância com a imperfeição da humanidade: “Onde estão os crocodilos famintos quando mais se necessita deles?!”. Mas eu, sim, tenho dignidade. Respirei novamente, olhei em todos os espelhos retrovisores (quantos eram, mesmo?), voltei a apertar o cinto de segurança (para dar sorte), virei a chave, saí. Primeira grande subida antes do banco. Respirei mais uma vez (estava com um pouco de falta de ar), conferi o cinto de segurança, dei uma espiada no terceiro pedal (aquele que eu não gosto), verifiquei os retrovisores (por costume, eu acho), olhei fixamente para a frente, desliguei o rádio (para aumentar a concentração), fui. Agora, dentista. Contei os pedais (estavam todos lá), ajustei o cinto de segurança, liguei o rádio, olhei todos os retrovisores (um por um), ignorei a buzina do carro que estava atrás (acho que era inveja), saí. Próxima tarefa: buscar os meninos na escola. Desliguei o rádio, contei os retrovisores, respirei fundo na esquina, soltei o cinto de segurança…

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