Versos

POESIAS

Biografia

Não tenho nada em minhas mãos,
a alma também está vazia.
O pouco que ontem eu tinha
hoje perdeu-se,
e a vida tomou o resto que havia.
 
De tudo o que herdei do passado –
canções, poemas e uma flor margarida –,
sobraram apenas pedaços;
do pão, umas tantas migalhas,
e os ratos comeram o pouco que eu tinha.
 
Pequenas sementes plantadas na terra,
nenhuma nasceu da esperança,
algumas perderam-se na seca ou no tédio
(grãos nefastos encharcados de covardia),
outras foram levadas pelas formigas.
 
Lamento recolher os restos e farelos
dessas sombras e ausências;
e do pó dos tempos e das vontades ressentidas
não ficou sequer lembrança,
nem fome sobrou na minha boca vazia.
 
Muito se perdeu neste perder-se de vida;
de mim mesma, que sou tão pouco
e pequena, perdi a metade.
Sozinha, perdi também o amor.
De ti, meu amor, perdeu-se também a saudade.
 
Enfim, o mal que eu tinha ainda era pouco.
Do medo e da falta, já me cansei.
Aqui estou desperta, secaram-se as feridas.
Com um pente dourado penteio os cabelos,
tranças longas e negras em laços e fitas.
 
Agora me atrevo a desejar novamente.
Na verdade, viver é insistir, é sobrar teimosia.
Mas dezembro agora é passado,
engano dos dias, resumo do tempo;
e da noite de ontem nasceu outra vida.

Distância

Afasto-me do teu corpo,
da tua pele,
do teu manto,
floresta de feras tantas,
que já não me importam,
irei para qualquer lado,
mas irei para longe.
Teus braços-tentáculos,
garras-unhas e membranas
ainda me querem,
mas não me alcançam,
porque serei breve e ainda mais distante.

Nem o teu perfume,
tua voz ou lembrança,
tampouco teus passos aflitos
que correm e me perseguem
nunca mais me encontram.
Fugirei como ave ou como espada,
veloz e única,
apenas me terás em pensamento.

Ave de rapina,
feroz e faminta,
não sou mais tua presa,
também tenho asas,
tenho céu e tenho pouso,
e o meu voo te renuncia.
Serei ainda de ti mais leve e ligeira
que essa neblina que te cobre,
montanha,
vulcão ou geleira.

Já fostes grande,
amigo dúbio,
mas ficou longe,
mais amargo e mais profundo.
De minhas posses e talentos,
minha prata,
meus canteiros e cabelos,
nada mais te pertence.
Não me sentes,
não me tocas,
não me vês,
e não me alcanças.

Andarilho, perdeste o caminho
em neve derretida
ou na espera aflita,
em mim não pensas,
não me entendes
e não me alcanças.
Como espelho de tua imagem,
persisto no teu sangue e entranhas.
Tu, lobo emudecido
ou talvez carneiro errante,
me desejas ainda que te asseguro:
sou pequena, sou breve e sou mansa,
mas não sou tua.

Criança rebelde,
insistes na procura,
e permaneço distante,
calada e mínima,
mas me estendo e aprofundo
no teu pesar e na lembrança.
Teus olhos me desejam
e tua boca ainda me busca,
é certo que ainda me amas,
anjo caído e triste,
mas nunca mais me alcanças.

Fragmentos

Descansam entre o pó e a terra
os pedaços caídos e desfeitos
dos meus sonhos.
Escondem-se entre os lobos
a minha coragem,
o ímpeto para o novo
e o perigoso.
Minha voz e meu vento,
sopro de vida e de sonho,
perderam-se em alguma parte dessa guerra.
Restos de mim,
coisas pequenas e quase findas,
memórias de um vazio,
da falta que não se percebe
e não se completa.
Cansada, recolho os vidros partidos
de uma existência de luta,
mas sem sucesso.
Medalhas são atiradas ao acaso,
ninguém ganhou a corrida,
ninguém encenou a tragédia,
todos esperam um herói,
um vencedor ou um líder.
Enquanto isso,
somos culpados ou perdedores,
testemunhas da vaidade de outros.
Não quero viver sem nada,
e cansei de morrer sozinha.
Cada dia é um a menos
no contar da biografia.
A matilha, a guerra e o vazio
já não quero para mim.
Se tenho de viver só,
serei a melhor companhia.
Estilhaço os vidros e espelhos
que ainda estão inteiros,
meu caminho é de madeira e de pedra,
nada se quebra ou se perde.
Ainda estou aqui, mais jovem que antes,
mais desperta e mais atenta.
Apenas eu,
e sou bastante.

Novamente

Entrou na minha casa
sem meu consentimento e vontade;
rastejando,
escondeu-se entre tantas
coisas remotas,
objetos que guardam esse segredo,
sombras que cuidam da minha falta.

Não fosse o medo – ou talvez
a ousadia, apenas talvez –
encontraria
inseto errante,
pecado displicente,
adoração (ou vício),
mas já o chamei
chamamos
por nomes afetuosos.

Também já ofendemos
e, muitas vezes,
sangramos juntos,
lágrimas enfurecidas,
sorrisos tristes
e olhos fechados,
afetos consentidos
e desejos roubados.

Mas já foi sol,
brisa perfumada,
felicidade.
Onde se escondeu?
Não sei. Se soubesse
talvez o rasgaria,
arrancaria
do pó em que descansa,
entregaria aos famintos,
aos apaixonados e amantes,
mas não o quero para mim.
Diria: leve-o contigo,
Queime-o na pele como tatuagem,
guarde-o com as memórias
amenas, e os sonhos selvagens,
rasgue-o ou o afogue na chuva.

Essa dor já conheci,
a última gota
na taça de vinho:
veneno.
Afeto esquecido
e talvez saudade:
muita.
No fundo de minha alma,
esse amor não quero mais.

Fragmentos

Descansam entre o pó e a terra
os pedaços caídos e desfeitos
dos meus sonhos.
Escondem-se entre os lobos
a minha coragem,
o ímpeto para o novo
e o perigoso.
Minha voz e meu vento,
sopro de vida e de sonho,
perderam-se em alguma parte dessa guerra.
Restos de mim,
coisas pequenas e quase findas,
memórias de um vazio,
da falta que não se percebe
e não se completa.
De joelhos, recolho os vidros partidos
de uma existência de luta,
mas sem sucesso.
Medalhas são atiradas ao acaso,
ninguém ganhou a corrida,
ninguém encenou a tragédia,
todos esperam um herói,
um vencedor ou um líder.
Enquanto isso,
somos culpados ou perdedores,
testemunhas da vaidade de outros.
Não quero viver sem nada,
e cansei de morrer sozinha.
Cada dia é um a menos
no contar da biografia.
A matilha, a guerra e o vazio
já não quero para mim.
Se tenho de viver só,
serei a melhor companhia.
Estilhaço os vidros e espelhos
que ainda estão inteiros,
meu caminho é de madeira e de pedra,
nada se quebra ou se perde.
Ainda estou aqui, mais jovem que antes,
mais desperta e mais atenta.
Apenas eu,
e sou bastante.

Biografia

Não tenho nada em minhas mãos,
a alma também está vazia.
O pouco que ontem eu tinha
hoje perdeu-se,
e a vida tomou o resto que havia.

De tudo o que herdei do passado –
canções, poemas e uma flor margarida –,
sobraram apenas pedaços;
do pão, umas tantas migalhas,
e os ratos comeram o pouco que eu tinha.

Pequenas sementes plantadas na terra,
nenhuma nasceu da esperança,
algumas perderam-se na seca ou no tédio
(grãos nefastos encharcados de covardia),
outras foram levadas pelas formigas.

Lamento recolher os restos e farelos
dessas sombras e ausências;
e do pó dos tempos e das vontades ressentidas
não ficou sequer lembrança,
nem fome sobrou na minha boca vazia.

Muito se perdeu neste perder-se de vida;
de mim mesma, que sou tão pouco
e pequena, perdi a metade.
Sozinha, perdi também o amor.
De ti, meu amor, perdeu-se também a saudade.

Enfim, o mal que eu tinha ainda era pouco.
Do medo e da falta, já me cansei.
Aqui estou desperta, secaram-se as feridas.
Com um pente dourado penteio os cabelos,
tranças longas e negras em laços e fitas.

Agora me atrevo a desejar novamente.
Na verdade, viver é insistir, é sobrar teimosia.
Mas dezembro agora é passado,
engano dos dias, resumo do tempo;
e da noite de ontem nasceu outra vida.

Novamente

Entrou na minha casa
sem meu consentimento e vontade;
rastejando,
escondeu-se entre tantas
coisas remotas,
objetos que guardam esse segredo,
sombras que cuidam da minha falta.

Não fosse o medo – ou talvez
a ousadia, apenas talvez –
encontraria
inseto errante,
pecado displicente,
adoração (ou vício),
mas já o chamei
chamamos
por nomes afetuosos.

Também já ofendemos
e, muitas vezes,
sangramos juntos,
lágrimas enfurecidas,
sorrisos tristes
e olhos fechados,
afetos consentidos
e desejos roubados.

Mas já foi sol,
brisa perfumada,
felicidade.
Onde se escondeu?
Não sei. Se soubesse
talvez o rasgaria,
arrancaria
do pó em que descansa,
entregaria aos famintos,
aos apaixonados e amantes,
mas não o quero para mim.
Diria: leve-o contigo,
Queime-o na pele como tatuagem,
guarde-o com as memórias
amenas, e os sonhos selvagens,
rasgue-o ou o afogue na chuva.

Essa dor já conheci,
a última gota
na taça de vinho:
veneno.
Afeto esquecido
e talvez saudade:
muita.
No fundo de minha alma,
esse amor não quero mais.

Distância

Afasto-me do teu corpo,
da tua pele,
do teu manto,
floresta de feras tantas,
que já não me importam,
irei para qualquer lado,
mas irei para longe.
Teus braços-tentáculos,
garras-unhas e membranas
ainda me querem,
mas não me alcançam,
porque serei breve e ainda mais distante.

Nem o teu perfume,
tua voz ou lembrança,
tampouco teus passos aflitos
que correm e me perseguem
nunca mais me encontram.
Fugirei como ave ou como espada,
veloz e única,
apenas me terás em pensamento.

Ave de rapina,
feroz e faminta,
não sou mais tua presa,
também tenho asas,
tenho céu e tenho pouso,
e o meu voo te renuncia.
Serei ainda de ti mais leve e ligeira
que essa neblina que te cobre,
montanha,
vulcão ou geleira.

Já fostes grande,
amigo dúbio,
mas ficou longe,
mais amargo e mais profundo.
De minhas posses e talentos,
minha prata,
meus canteiros e cabelos,
nada mais te pertence.
Não me sentes,
não me tocas,
não me vês,
e não me alcanças.

Andarilho, perdeste o caminho
em neve derretida
ou na espera aflita,
em mim não pensas,
não me entendes
e não me alcanças.
Como espelho de tua imagem,
persisto no teu sangue e entranhas.
Tu, lobo emudecido
ou talvez carneiro errante,
me desejas ainda que te asseguro:
sou pequena, sou breve e sou mansa,
mas não sou tua.

Criança rebelde,
insistes na procura,
e permaneço distante,
calada e mínima,
mas me estendo e aprofundo
no teu pesar e na lembrança.
Teus olhos me desejam
e tua boca ainda me busca,
é certo que ainda me amas,
anjo caído e triste,
mas nunca mais me alcanças.

Sementes

Somos sementes
de mesma agricultura e conceito.
Iguais
aos nossos pais e irmãos,
compartimos o mesmo destino
de viver presos na terra
e crescer como mato,
árvore ou hera.
 
Mas fingimos ser como água,
rio de corredeira;
outras vezes de remanso,
crescer com a chuva;
outras vezes com o orvalho,
passar por cachoeiras e muitas pontes
em um rio que vai longe, muito longe,
do lugar onde nascemos.
 
Tentamos ser como os pássaros e suas plumas
e partimos.
Buscamos o sol,
o céu e as nuvens.
Voamos sobre as montanhas,
fugimos para os desertos,
nos escondemos nas tempestades,
e seguimos nosso voo
para longe,
muito longe
daquele distante país em que nascemos.
 
Mas
ainda somos sementes,
uma vez sonhamos brotar na terra
e crescer como mato ou hera,
e não contentes com o destino de sermos
folha e sombra,
partimos,
viajamos como água e como ave
para longe, muito longe
de um esquecido jardim,
talvez de grama,
abelhas,
mel e flores.

Mundo Grande

Mundo grande e frio,
tão cheio de vazios e ausências,
prerrogativas
de nenhuma existência,
continentes,
oceanos,
montanhas,
brisas,
sombras,
reticências.

Mundo imenso,
habitado por coisas pequenas e quase nulas,
pequenas formigas,
abelhas,
insetos desatentos
e cidades de pessoas distraídas.

Teu corpo,
território ocupado.
Tua boca,
ilha habitada por mim.
Teu peito,
braços e pernas,
cabelos em desalinho.
O ar que respiras
é a brisa que minha pele resfria.

Permitas que eu seja tua,
aceitas o pouco que ainda tenho:
apenas meu ser em movimento,
meu corpo diminuto,
todavia desperto.
Juntos, seremos
o amor que falta no mundo.
Serei tua,
e o mundo novamente será pequeno.

Oceano

São tantas as pequenas pérolas que faltam
neste mar em que habito,
as ausências latentes
que me invadem e me dominam.
Desejo tudo aquilo de que não preciso,
e dessa abundância de desejos
eu preciso muito e quero mais.
E desse muito que me sobra,
quero o todo que está à minha volta
e o que ao longe está.

Me escondo em um deserto saturado
de vontades próprias e alheias,
quero mais de mim e de todos,
mais sonhos e anseios,
e desta falta e vazio
quero muito ainda mais.
Me confunde esse labirinto de ausências
e desejos ocidentais
no qual me escondo e me iludo:
algumas marcas de publicidade
e tudo o que o dinheiro pode comprar.
Quero mais de mim e de nós,
e ainda sei que vou partir
saturada e infeliz,
transbordando do peito o vazio,
repleta de água e de mar,
ainda sedenta de mim.

Ano Novo

Voo aberto e livre
do pássaro desimpedido.
Flecha lançada
ao transparente mundo aéreo
do futuro distante.
A permanência dos
desejos próximos e vizinhos.
Comeremos fruta madura
ou provaremos água de chuva?

Um ano novo feliz ou ano bom,
risco iminente,
segurança ou aventura:
desejamos apenas o que nos convém.
Estaremos distantes e apressados,
aves em migração,
abelhas operárias, cardume
ou peixes solitários?
Seremos qualquer coisa, não importa,
mas seremos breves.

Porque outro ano ainda mais novo
também há de vir.
Incerto ou misterioso,
não é o futuro que procuramos:
esperança, desejo ou sonho prometido.
Somos nós que, pacientemente,
no viver de cada dia e cada hora
eternamente encontramos.

Estrangeiro

Preciso defender as fronteiras,
meus limites e meu espaço;
defender minha pele morena e meu sonho cansado.
Que o outro não me invada
e presuma
o que sou
onde estou,
o que quero,
aonde vou.
Sou pequena e mínima, mas estou aqui.
Ele fala,
grita,
interrompe em gestos desnecessários,
incompreensíveis,
num idioma qualquer.
 
Caminho na rua,
Entro nas casas e nos quintais;
não conheço este outro
que também vive aqui,
mas ele pensa que me entende,
me apreende,
me surpreende.
Corro,
fujo,
me escondo.
Ele não me alcança.
Trouxe comigo muros e fronteiras.
 
O outro não me suporta.
finjo que não percebo,
não nos vemos jamais.
 
 
Ignoro esse estranho,
viajo por sua cidade,
derramo a saudade que tenho,
espalho minha coragem e meu medo
guardados em ventania.
Ele não me entende,
mas não me importo:
estrangeiro é você,
que não fala a minha língua.
Exilado, imigrante e singular,
sou minha própria cidadania.

Contrato

Não atendo a pedidos,
não escuto argumentos,
não aceito insistências;
eu sou de mim mesma
e não me divido com ninguém.
Quero que seja meu,
e só meu,
esse calor que sinto,
essa força que me obriga,
o motivo que me desperta
e rouba o meu dia.
Apenas minhas
as consequências
dos meus erros e acertos,
a inquietude da noite
e o sossego da tarde.

Que sejam de minha propriedade
meus motivos,
minhas vontades
e minhas verdades,
meus espaços vazios
e minhas perguntas.
Que ninguém tire de mim
os meus erros,
as feridas,
os passos errados
as cicatrizes
que se desenham na minha pele.
Que ninguém me roube
o motivo do meu sorriso
e o espinho
que me acompanha.
Que eu tenha direito de posse
sobre meu passado,
presente e futuro.
Que eu seja responsável por mim
como se fosse adulta,
e adulta serei um dia,
e mesmo nesse dia
e na noite que segue,
continuarei a mesma de sempre.

E quando assinar o contrato
desse latifúndio particular
de cabelos longos e negros,
pele queimada
e vontade estendida,
então posso ser o que quero,
posso ser quem quiser,
posso ser casta ou contida,
imensa, prismática
ou de mil cores colorida.
Aceito esse presente da vida,
de querer ser mais do que posso
e buscar o impossível,
extremamente imperfeita,
perigosamente cristalina,
fonte abundante de águas turbulentas,
sede infinita de vontades torrenciais,
sem dúvidas, que trazem
sombras à minha luz.
Eu sou assim e sou minha.

Agora me entrego
a quem eu quero,
a alguém que me redima
de tamanho egoísmo e vaidade
de ser feita em liberdade.
Sou de mim mesma,
é verdade,
e com direito à igualdade
finalmente também serei tua.

Cuidado

“Não pisar nas flores”
era só o que eu pedia.
Cuidado com os gerânios
e as bergamotas:
demoram para crescer;
cuidado com os cactos
e seus espinhos.
Te avisei: não pises aí!
Mas não escutaste.
Andaste desatento,
saíste apressado,
pisaste
nas plantas que viviam
no meu pequeno jardim.
 
Prometeste outro canteiro,
uma cerca de arame,
sementes novas,
um tanque de água limpa,
trocar a simplicidade da terra e da chuva
por qualquer engenharia.
 
Não, não quero
nenhum outro jardim,
queria apenas aquele canteiro
que eu tinha,
de poucas ervas,
é verdade,
mas eram minhas.
 
Por isso,
toma cuidado, amor!
Quando desatento andares e
saíres apressado,
não te esqueças de mim.
Lembra-te, havia um canteiro
onde os insetos convidavam
a voar com gerânios e margaridas,
mas pisaste, desatento,
agora só tem mato
e erva daninha.

O Encontro

Enfim, o sol te encontra:
claridade.
Estrelas, vagalumes,
todos os tons da lua,
todas as cores da luz.
Depois de tempos,
o encontro das águas,
oceano e orvalho,
o infinito e o mínimo.
Novamente estamos sós,
apenas dois,
mas muito dentro de nós,
(universos compartilhados
em carícias breves e beijos mínimos).
O pouco que nos falta:
sobras, sombras e vazios,
coisas pequenas,
esquecidas ou transitórias,
algum suspiro ou saudade
(e de tua boca a vontade).
 
 
Ainda assim
somos apenas dois,
mas já fomos muitos:
fome e sede,
luzes e sombras,
a procura e o descanso,
o amor, em sua forma resumida
e necessária.
Desejamos as águas e as ondas,
o amarelo do sol
derretido no verde do mar,
brilho celestial e pérola escondida.
E, finalmente, a luz nos encontra.

Epidemia

Não sei, ninguém sabe
quantos nomes essa tristeza tem.
Me arrasto pela sala vazia,
a mesa não posta,
a cozinha, os pratos.
Ninguém come, assiste novela,
gargalha, dança, ouve música.
Não tem mais ninguém aqui,
apenas eu,
que insisto em sobreviver
nesta rotina inútil.
 
Muitas coisas me observam no silêncio:
os móveis cobertos de pó,
os vasos e suas plantas secas,
as lembranças penduradas nas paredes,
o colchão, que ainda guarda o formato de um corpo sonolento,
a toalha utilizada no último banho,
garrafas cheias e copos sedentos.
Tapetes estendem-se na sua leveza,
entregues a um descanso fúnebre:
ninguém os pisa.
 
Xícaras sonolentas esperam o café,
anseiam pelo toque suave de uma boca, talvez um beijo.
Roupas penduradas no armário
aguardam em fila para a entrada no ônibus, no trabalho ou
no baile.
Sapatos desistiram de caminhar, dançar,
vazios de pés que lhes permitem vida e movimento.
Os livros aprisionam algum conhecimento esquecido,
e o relógio avisa as horas passadas (e são muitas).
Agulhas e linhas desistiram de um passatempo ou ofício,
espelhos denunciam um mundo que já foi perfeito,
mas não tínhamos essa suspeita.
 
Um pássaro pousa na janela
e assobia um recado:
“Ali, como aqui, continua tudo igual”:
o afeto pouco e a palavra mínima.
Recordações de tempos melhores ou mais felizes,
tempos de navegar de braços dados
pelo espaço e alegria
dos encontros sociais.
Pessoas que partiram cedo demais,
despedidas que não deveriam acontecer.
Uma casa e seu habitante em espera suspensa
no torpor, no vácuo, no nada.
 
É noite,
o sol caiu para trás do distante
e é hora de dormir.
Nunca estivemos tão sós,
nunca fomos tão tristes.
Chamam isso de solidão, angústia
ou depressão, não sei.
Carrego o meu corpo para o mais tarde,
para o depois e o mais distante,
um outro tempo
não é agora,
um outro lugar
que ainda não existe.

Destino

“E faça-se a luz”,
mas tudo se fez escuro
e triste.
Escuro e triste tornou-se o dia
e muitas noites imensas,
imersas em um único dia.
Depois dos dias felizes que vivemos
à luz do sol ou no frescor da lua,
seguiram-se eclipses contínuos,
as marés ocultas.
No decorrer do tempo
tudo se fez reverso e findo
e também inútil.
De cada espaço, outrora ocupado,
recanto de miséria;
e do grito abafado,
a entonação.
De cada excedente, o desperdício;
e do amor que tivemos um dia,
a consolação.
Naquele ninho de águias
que vivemos por tantos anos,
mesmo solitários, deixamos
nossa asa e nosso sonho.
 
Neste caminho que inventamos,
buscamos outros ares,
construímos outra casa
e lançamos outro voo.
Ainda hoje encontramos
esse destino que não perdoa:
nas paisagens não vistas
e das viagens não feitas
carregamos as mesmas bagagens.

Pescadores

Não eram os peixes
o que buscávamos nos rios,
tampouco
as correntes mansas de travessia
ou as pedras frias e verdes de limo.
Um pouco de nós
perdíamos nas tardes,
não tínhamos pressa,
afinal,
havia muitos anos
de nós sobrava o tempo,
mas faltava a vida.
 
Apenas queríamos a presa,
mas os outros a roubavam de nós,
redes vazias, água sem sal.
Fomos apenas dois, mais jovens que antes,
sedentos de vida, secos de alma,
pescadores, mas não sabíamos pescar.
 
Não era você, sozinho, no rio a cismar,
o culpado,
tampouco era eu
que esperava o barco na margem.
Tínhamos fome de peixe e sede de mar,
mas o rio secou e perdeu-se
na imensidão que lhe faltava.
 
Apenas aventureiros,
amantes do rio e da pesca,
procurávamos a vida
e desejávamos o mundo,
mas terminamos sem nada.

Luz

Tens uma luz
brilhante e fraterna:
cintila na brisa,
flutua e viaja
de noite na lua,
e com ela
suavemente mistura.

Se funde e derrete
em cores esparsas
no vento e nas noites.
Aurora e menina
ao mesmo tempo,
estrela e faísca,
uma luz brilhante que pulsa.

Amo a tua luz,
que brilha e reflete
a luz amarela do sol,
quando a noite convida
a luz alva da lua.

Resumo

Queria viver apenas
de sínteses,
pedaços resumidos de mim,
uma lágrima,
um voo ou um pássaro,
coisas pequenas e flutuantes,
talvez brisa,
talvez aroma;
ou ainda
pétalas e plumas,
resquícios indiferentes
às virtudes dos grandes;
sombra de altos edifícios,
colmeia e abelhas,
ainda menores que suas asas
e pequenas gotas de mel;
suspiros mínimos e indeléveis,
resumir minha presença no mundo
apenas ao essencial,
uma lembrança,
um adeus ou um suspiro;
talvez reduzir-me ainda mais,
cores diáfanas ou transparências,
uma breve história,
ou mínima narrativa;
palavras omissas,
perguntas não feitas,
recolher-me a um vazio,
diáspora dos meus dias,
ou fuga para um deserto.
 
Quanto dói saber
que poderia ser tudo,
mas ainda assim
queria ser apenas o nada.

Fim de Estação

E termina a primavera.
É chegada a hora
de retirar as flores,
guardar o viço,
estancar as águas,
secar as folhas,
pausar o tempo,
buscar outras dores,
verter veneno,
derramar tristeza,
celebrar a morte
e conter o riso.
 
Espera!
 
Antes de qualquer alegria, espera.
Espera a tormenta ou a lembrança,
porque tudo finda
e tudo é breve.
 
Ainda me lembro:
escasso é o amor,
breve é a chama,
mais breve ainda
o tempo perdido.
 
Suave é a alma
e rápido o correr do vento.
Parece eterna a dor profunda,
infinito o medo, a mágoa,
a morte oculta.
 
É breve e certo como a luz do dia,
e a viagem nossa que finda.

Cotidiano

Todas as manhãs, a passos largos e solitários,
desisto um pouco do meu dia.
Pessoas apressadas e distraídas,
neste caminhar sempre atrasado.
Só eu conheço as pedras que visitam os meus sapatos,
e os rostos tão iguais que não me saúdam.
O meu caminho não se esquece
das saudações de bom dia que não recebeu
e dos sorrisos que me perderam.
Só eu sei a saudade que me encontra à noite
e a distância que me atravessa o dia.
Só eu sei.
Estranhos são os outros
que não sabem.

Quando Amanhece

Como um verso que se desenrola,
vem começando o meu dia.
Encontro terra, vento, floresta
e muitas outras alegrias.
Mas, se o que procura é angústia
para justificar suas feridas,
também há lodo, pedra e erva daninha.

Não se aquiete,
não se deixe enganar.
Aqui neste dia
temos muito para escolher,
de tudo há um pouco,
e que há também
penas para seu sofrimento
ou afeto de companhia.

Aqui, nesta manhã de janeiro ou abril,
tem água para qualquer sede,
tem ferida para qualquer dor.
Não me importa o que quer
e qual fantasia escolher.
Para começar bem seu dia,
pode ter chuva, sol ou calor
ou talvez euforia.

Toda luz guarda um pouco de sombra,
um pouco de penumbra conduz.
Não quero que se desespere,
tampouco que se iluda,
mas como tão grande é a Terra
e tão longa pode ser a vida,
agora nesta manhã
de primeiras horas do dia,
escolha o que prefere:
temos espinhos para qualquer ferida,
sorrisos para qualquer alegria.

Poema em Três Tempos

Olhamos para trás
e encontramos
as ausências que nos foram concedidas,
dívidas herdadas,
reticências e vazios
preenchidos com quase nada
do muito que nos falta:
se não fosse por isso,
se não fosse por aquilo.
Desejamos um passado
que nunca aconteceu.
Vivemos as mentiras
como se verdades fossem,
procuramos o escuro
porque é noite,
e a luz ainda não se vê
simplesmente assim
e já dez anos se passaram
e outros mais
de amar cada vez menos.
 
Um fantasma
habita a floresta das almas esquecidas,
alimenta-se de mato e espinhos
e bebe água da chuva,
pés descalços, magro e pálido
sobrevivendo entre os insetos,
os esperançosos e os marginais.
Mas algumas vezes
deixa o seu ninho
e vem nos procurar,
espera na calçada
avança e bate à porta,
recua,
finalmente se esconde.
Esse é o amor
que pede para entrar.
 
Escutou algo, meu bem?
Ela estava distraída
na lida de todo dia
correndo de lá para cá.
Olha que o fogo apagou
e o vaso quase caiu,
cismou de encher
o vaso de água
e acender o fogo outra vez.
Outro dia quase igual.
Então,
de repente,
da mesma rotina cansada
interrompe os afazeres,
suspira e filosofa:
Não, não ouvi nada.

Para Vinícius

Existe algo meu que te envolve e te possui,
e tens algo faminto que me consome:
este nosso grande amor compartido,
tão profundo, imenso e próprio de mil cores
que, mesmo sem querer ser nada,
é colorido maior que nosso pranto.
Mas também amor mesquinho,
malvado e egoísta,
peixe maior que seu cardume,
se inibe, provoca ou se anula,
quando se descobre
possuído por ciúme.

Este nosso grande amor maior que o mundo
nos invade, nos cega e nos perdoa.
Às vezes, se esconde no mais ínfimo
resquício de perfume.
Se diminui ou evapora,
quando se magoa ou é ferido.
Desaparece,
se menosprezado ou preterido.

Amor de muito amar e amarelo,
se inflama e se consome
com qualquer faísca do teu lume,
queima a pele, a boca e os olhos
e só se apaga
com o suor de nossos corpos.
Mas é também amor rebelde e exigente,
se agita e exaspera,
tão frequentemente carece de sentidos
quando não te permites doar completamente
aos meus desejos e caprichos.

Amor de muitas cores, vozes e perfumes
nos explica e nos aquece,
invade a vida e enriquece
a quem dele se alimenta,
mas também é negro, farto e bruto,
se transforma em migalha ou conteúdo,
esmorece ou fortalece
com o teu sorriso ou teu apuro.

Amor de muitos nomes e sabores,
também é luto, mel e pertinência;
amor de muitas festas e favores,
carinho, afeto e providência.
Amor, quero o teu amar
atento e eterno,
imenso e amarelo
amanhã
muito mais
do que quero hoje.

Pedagogia

Aquele ranger de dentes,
a cama vazia,
a malcriação,
alguém falou que qualquer convívio
é amor,
mas não.

Perguntas não respondidas,
desculpas,
erros e culpas,
a carícia esquecida,
o suave sempre deixado
para depois.
Tentaram nos enganar;
a rotina falou que solidão
também era amor,
nunca foi.

O toque frio e distante,
a boca longínqua,
a falta,
o vazio…
Pensamos que aquilo,
um dia
seria a vida sonhada,
mas
nos afogamos em pesadelo
e rancor,
queríamos que fosse amor.
No fundo
não era nada.

Pouco a Pouco

Queria ser,
nesta noite fria,
a estrela
de tua companhia.
 
Tudo ficaria mais azul
e mais brilhante,
se à tarde
eu fosse a amiga
que te convida.
 
Você só,
eu também sozinha
nos encontraríamos pela manhã
e seríamos um do outro
companhia.
 
No fim do dia
te contaria meus segredos,
e os teus eu ouviria.
 
Se tempo houver,
eu quero ser
de tua noite
a estrela que convida
apenas amigos,
talvez amantes
até que
em algum momento,
talvez numa madrugada atrevida,
o sol nos encontre
e bruscamente
nos denuncie.
 
Durante toda a noite,
já não mais fria,
para a sua solidão
eu seria a mais cálida
companhia.
 
Queria ser ainda mais
não apenas uma estrela,
quem sabe
astro branco e reluzente
e derramar sobre ti
meu luar impune
e ser como a lua
serena e alva,
e suavemente
te beijaria.
 
Mas não sou lua,
tampouco estrela.
Diante de sua indiferença,
anoitece o meu calor,
termina o meu dia.
Sozinha nesta noite fria
apenas a lembrança
por companhia.
Você,
sempre silêncio
e saudade;
eu, sempre poesia.

O Engano

O tempo é uma escola escondida
atrás de muros de cabelos brancos.
Lições de acontecimentos,
mas também
alguns esquecimentos
profundamente necessários.
Livros ainda não lidos,
réguas e cadernos,
esquadros e tintas,
manuais e diagramas
cansados de tantas lembranças.
Ensinar-te-ei o mistério da eloquência,
e também de algumas portas
e janelas abertas.
Acontecimentos fluidos que passaram
sem o teu conhecimento e vontade.
Conversas sussurradas e contratos
que ainda trazem a nossa história.
Enterrados sob pétalas biológicas e anatômicas
estão os mais sagrados e devassos acontecimentos.
Não te lembras,
mas todas as literaturas
ainda trazem o nosso nome.
Decifra-me,
eu te peço;
Devora-me,
eu te permito.