Na suposição de que você tenha passado os últimos meses em uma ilha remota do Pacífico ou em um retiro espiritual em uma montanha do Nepal, a sua vida provavelmente tem sofrido consequências mais ou menos profundas da pandemia do coronavírus. Ainda não temos uma compreensão segura da extensão da doença, mas um de seus sintomas já começa a ser percebido: trata-se do aumento expressivo nos casos de violência doméstica e divórcios. Enquanto muitos acreditavam em um eventual baby boom, ou seja, um maior número de nascimentos graças à proximidade maior entre os casais, está acontecendo o contrário: uma crise epidêmica nos relacionamentos, talvez causada por essa mesma proximidade. Ou seja, o amor também é mais uma vítima do coronavírus.
É possível também que muitas pessoas solteiras e solitárias vão considerar a ideia de casamento; muitos casais irão aproveitar a crise para reacender a paixão, estreitar os laços ou apenas desfrutar a convivência estendida e obrigatória com a sua cara metade. Porém, muitos casamentos estão sofrendo com o desemprego, dificuldades financeiras, cuidados com pessoas enfermas na família, perda de um ente querido, entre outras. A rotina com crianças pequenas, sem o apoio da escola, também pode ser desgastante, e algumas “válvulas de escape” — como passear no shopping, ir à praia ou simplesmente sair para tomar uma cerveja com amigos — não estão disponíveis. Com toda a família dentro de casa, as tarefas domésticas tendem a aumentar; e o home office, algumas vezes desempenhado por ambos, também não ajuda muito.
Quando pensamos em amor, vem à lembrança a figura do Cupido, aquela criança de olhos vendados e travessa que atira flechas no coração de homens e mulheres. O amor é assim mesmo, uma criança impulsiva e caprichosa. E é bom que seja assim, senão, que graça teria, não é? O amor não conhece regras, amor é sentimento, emoção, aventura e muitas outras coisas das quais os poetas e sonhadores têm se ocupado em explicar. Mas a convivência com o ser amado é outra história, objeto de estudo de psicólogos e terapeutas. Parece que a quarentena acabou desfazendo as regras utilizadas na vida do casal e da família e novas regras ainda não foram criadas. Ou talvez a rotina estivesse tão acostumada com o tumulto e falta de ordem que a convivência sem o amor nem fosse percebida.Casamento é como uma viagem de navio: é preciso ter procedimentos estabelecidos, funções distintas, tarefas definidas, horários marcados, tudo isso construído em comum acordo entre os navegantes. Fácil não é, mas encontrar o amor perdido no meio do caos, da confusão, também não. E para colocar regras precisa ter diálogo, interesse mútuo e genuíno em conviver civilizada e amorosamente com o outro. Não é necessário buscar a perfeição ou o equilíbrio exato, pois essas coisas não existem, mas é preciso ter uma certa ordem. É como colocar margens em um rio, assim a água pode fluir abundantemente; sem margens o rio vira pântano. A vida conjugal, com ou sem pandemia, deveria ser entre dois adultos cuidando das coisas que precisam ser cuidadas — crianças, saúde, casa, trabalho, dinheiro etc. — em entendimento, em harmonia. E o amor continua sendo aquela criança sapeca, dando voltas por todo lado, alegrando e motivando as pessoas, a principal razão para estarem juntas; senão, que graça teria?