Prazeres perdidos

December 30, 2023

Um dos maiores prazeres que tive, quando menina, era comer língua de boi. Bons tempos aqueles, quando, por falta de dinheiro para comprar carne de primeira, os pais ensinavam aos filhos o exercício espiritual de provar, e, eventualmente, gostar, de miúdos de boi. Parece que isto se perdeu com o tempo, talvez devido à queda no preço da carne. Mas, quem sabe, com a crise atual, aqueles bons tempos das crianças com narizes torcidos diante de um prato com conteúdo duvidoso ainda volte. Tudo pelo aprimoramento humano.

Minha mãe costumava preparar língua com muita cebola, alho, tomate e cheiro-verde, uma delícia. Era, porque meu irmão, adolescente na época, me tirou esse prazer.

— Você vai comer “isso”?

— Vou, por quê?

— Imagina! A língua ficou tanto tempo na boca do boi, ele mastigando capim, babando, lambendo e agora você come?

Bastaram alguns segundos de ingênua imaginação infantil, e nunca mais comi língua de boi. O miolo, tempos depois, abandonei por pura consequência. Ainda mantenho o hábito de comer fígado, mas o curioso é que nunca preparei para meus filhos. Infelizmente, é mais um dos processos civilizatórios que a humanidade está perdendo.

Outro prazer perdido foi o de chupar laranja. Nunca gastei muito tempo procurando, em sua casca, sinais de invasão por seres invertebrados: apenas um ligeiro jato de água na torneira e já me preparava para cortar a casca em uma longa e única tira fina, cortá-la ao meio e saboreá-la. Até que, um dia, quando estava prestes a chupar uma laranja, meu sobrinho adolescente (mas no bom sentido) advertiu:

— Tia, cuidado, tem um furinho ali.

Sempre fui muito precavida com pêssegos, maçãs e peras. As uvas e jabuticabas nunca me despertaram desconfiança, sempre comi sem receios. Talvez por causa do seu tamanho diminuto, estas frutas nos induzem a aceitá-las com uma certa condescendência. Quanto às goiabas, um ser humano sensato jamais deveria comê-las de olhos fechados, especialmente as brancas. Farta experiência anterior, quando costumava roubá-las do quintal do vizinho da minha avó, me dá respaldo para desconfiar de sua aparência inofensiva. E frequentemente, muitas eram jogadas fora, ainda que com certo remorso. Não, o remorso não vinha porque eram roubadas, mas porque, com tantas goiabas no pé, eu justamente escolhia as que estavam bichadas. Coisas da infância.

Enfim, talvez por falta de maturidade alimentar, eu nunca desconfiava da inocência das laranjas compradas em supermercados e quitandas. Quando nos reunimos na casa da minha mãe, especialmente após as refeições, damos início a um tradicional festival cítrico: ninguém chupa menos que três laranjas. Os mais empolgados — entre eles está o meu irmão, aquele da língua de boi — nunca param antes da sexta. Atualmente, com os avanços da agricultura, os laranjais estão mais saudáveis, e é mais difícil encontrar um alien habitando seu interior. Mas nesse dia… Era uma fruta esfericamente perfeita, uniformemente alaranjada e perfeitamente apetitosa, sem nenhum sinal aparente de invasão alienígena. Mas meu sobrinho encontrou:

— Aqui, tia — e apontou — corte com a faca.

Realmente, ele tinha razão: o verme estava lá, robusto, grande, elegantemente branco e visualmente saudável, notadamente depois de uma dieta rica em vitamina C. Minha irmã diz que era minha imaginação, tal era a minha histeria, mas ainda acho que o bicho tinha dentes. Esse fato ocorreu já tem alguns meses, nas últimas férias, mas ainda não superei a decepção. O suco da fruta ainda é admitido sem grandes restrições, surpreendentemente, mas a fruta em si é recebida apenas depois de uma criteriosa e sistemática análise. A coloração é uniforme? A casca está firme e intacta? Há algum sinal de sabotagem extraterrestre? Mesmo assim, aquele prazer inconsequente e infantil de saborear algo sem considerar o seu conteúdo interior, ou a sua existência pregressa — exemplo da língua do boi — perdeu-se para sempre. 

Mas me consolo sabendo que não sou a única. Tenho uma amiga agrônoma que não come morango por causa dos agrotóxicos; e uma amiga bióloga que não come carne de frango por causa dos hormônios colocados na ração. Tenho um amigo, heterossexual convicto, que não come bananas, pepinos e cenouras, mas ainda não sei porquê. Acredito que a ignorância é o que nos mantém vivos e alimentados. Abandonei a paixão pelo cigarro — e o risco de ter câncer de pulmão — há muitos anos; bebo raramente e, ainda não sei explicar por que; não sou capaz de comer um assado, seja peixe, porco, pato, frango ou peru, servido inteiro na bandeja, com cabeça e tudo, com o bicho me olhando. Se não posso ignorá-lo, mudo minha cadeira de posição. Pode parecer estranho, mas prefiro pensar que é apenas precaução. Coisa estranha, a vida.

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